Mar do Sul da China: o cerne da questão
30 de Julho de 2020
Texto de Pepe Escobar para o Blog do Saker, postado originalmente no site Asia Times
Tradução de btpsilveira
Quando os grupos de ataque dos porta aviões Ronald Reagan e Nimitz envolveram-se recentemente em operações no Mar do Sul da China, muitos cínicos notaram que a Frota do Pacífico dos Estados Unidos está fazendo o seu melhor para tornar a teoria infantil da Armadilha de Tucídides numa profecia autorrealizável.
A ideia oficial pro forma, expressada pelo contra almirante Jim Kirk, comandante do Nimitz, é que as operações foram lançadas para “reforçar nosso compromisso com a liberdade da região do Indo/Pacífico, com a ordem internacional baseada em normas e com nossos aliados e parceiros”.
Esses clichês não chamam a atenção de ninguém, desde que a mensagem verdadeira foi dada por um agente da CIA que posa como diplomata, o Secretário de Estado Mike “nós mentimos, nós enganamos, nós roubamos” Pompeo: “a República Popular da China não tem bases legais para impor unilateralmente sua vontade na região” referindo-se à Linha de Nove Traços. Para o Departamento de Estado, Pequim emprega nada menos que “táticas de gangsters” no Mar do Sul da China.
Repito: ninguém presta atenção porque a realidade no mar é dura. Qualquer coisa que se mova no Mar do Sul da China – artéria marítima crucial para o comércio da China – está à mercê do PLA (People’s Liberation Army – Exército da Libertação Popular [ELP] - NT) chinês, que decide quando e se empregar seus mísseis mortais DF-21D e DF-26 “matadores de porta aviões”. Absolutamente não há qualquer maneira da Frota do Pacífico vencer uma guerra aberta no Mar do Sul da China.
Bloqueados eletronicamente
Não referido nem citado pela mídia ocidental, um relatório chinês crucial traduzido por Thomas Wing Polin, analista residente em Hong Kong, é essencial para entender o contexto.
O relatório se refere aos aviões de guerra “Boeing EW Growler” dos EUA que acabaram totalmente fora de controle através de aparelhos de bloqueio eletrônico postados nas ilhas e recifes do Mar do Sul da China.
De acordo com o relatório, “depois do acidente os Estados Unidos negociaram com a China exigindo que esta desmantelasse os equipamentos eletrônicos imediatamente, mas foram rejeitados. Tais aparelhos eletrônicos são parte importante da defesa marítima do país e não armas ofensivas. Portanto, o pedido do exército dos Estados Unidos para retirá-los não faz sentido.”
Fica ainda melhor: “No mesmo dia, Scott Swift, antigo comandante da Frota do Pacífico finalmente reconheceu que o exército dos EUA chegou tarde demais para controlar o Mar do Sul da China. Ele acredita que a China instalou grande número de mísseis de defesa aérea Hongqi 9, bombardeiros H-6K e sistemas de bloqueio eletrônico em ilhas e recifes. O aparato de defesa pode ser chamado de sólido. Caso os jatos de combate dos Estados Unidos se precipitarem sobre o Mar do Sul da China provavelmente encontrarão ali seu ‘Waterloo’”.
A questão é que Pequim considera esses sistemas – entre eles o bloqueio eletrônico – instalados nas ilhas e recifes no Mar do Sul da China pelo ELP cobrindo mais da metade da superfície total, como parte de seu sistema nacional de defesa.
Coloquei anteriormente em detalhes o que o Almirante Philip Davidson disse ao Senado quando ele ainda era um candidato a liderar o Comando do Pacífico para os Estados Unidos. Suas três principais conclusões foram:
1) “A China está buscando recursos avançados (por exemplo, mísseis hipersônicos) para os quais os EUA ainda não têm capacidade de defesa. Na medida em que a China conseguir estes sistemas de armamentos avançados, as forças dos Estados Unidos no Indo-Pacífico estão em risco cada vez mais elevado.”
2) “A China está minando a legalidade da ordem internacional.”
3) “Atualmente, a China é capaz de manter o controle sobre o Mar do Sul da China em qualquer cenário a não ser uma guerra contra os Estados Unidos.”
Implícito nessas declarações está o “segredo” da estratégia dos EUA para o Indo-Pacífico: na melhor das hipóteses trata-se de tentativa de contenção, dado que a China continua a solidificar sua Rota da Seda Marítima, ligando o Mar do Sul da China ao Oceano Índico.
Lembrem-se de Nusantao
O Mar do Sul da China é e continuará sendo um dos principais pontos críticos do jovem século 21, onde grande parte do equilíbrio do poder entre Leste e Oeste será questionado.
Já toquei no assunto anteriormente em alguns detalhes, mas, mais uma vez, um breve pano de fundo histórico é absolutamente essencial para entender as circunstâncias atuais que fazem o Mar do Sul da China parecer e sentir-se como um lago chinês.
Comecemos em 1890, quando Alfred Mahan, então presidente do Colégio Naval dos Estados Unidos escreveu seu livro seminal The influence of Sea Power Upon History, 1660-1783 (Influência do poder marítimo no curso da história, 1660-1783 – NT). A tese de Mahan era que os Estado Unidos poderiam pesquisar por novos mercados para comerciar globalmente, e protegê-los através de uma rede de bases navais.
Foi o embrião do Império de Bases (norte)americano – o qual ainda está ativo.
Foi o colonialismo das potências ocidentais (Europa e América) que engendrou a maioria das fronteiras terrestres e marítimas dos Estados limítrofes ao Mar do Sul da China: Filipinas, Indonésia, Malásia e Vietnã.
Estamos falando de fronteiras entre possessões coloniais diferentes – que desde o início disparavam problemas insolúveis que foram herdados pelas nações pós coloniais.
Essa história tem sido sempre completamente sui generis. O melhor estudo antropológico sobre a questão (Bill Solheim’s, por exemplo) define as comunidades quase nômadas que desde tempos imemoriais viajavam e comerciavam através do Mar do Sul da China de Nusantao – uma palavra Austronésia composta para “ilha do sul” e “gente”.
Os Nusantao não eram um grupo étnico definido. Eram parte de uma rede marítima. Por séculos tinham pivôs importantes desde a costa do Vietnã central e Hong Kong por todo o caminho até o delta do Ripo Mekong. Não eram ligados a nenhum “estado”. A noção ocidental de “fronteiras” sequer existia. Em meados dos anos 1990, tive o privilégio de encontrar alguns de seus descendentes na Indonésia e no Vietnã.
Assim, foi apenas no final do séc. 19 que o sistema Westfaliano manobrou para congelar o Mar do sul da China dentro de um contexto inamovível.
O que nos leva de volta ao ponto crucial do motivo da sensibilidade chinesa com suas fronteiras: isso está ligado diretamente ao “século da humilhação” – quando a corrupção interna e a fraqueza chinesa permitiram aos “bárbaros” ocidentais tomarem posse de território chinês.
Um lago japonês
A linha dos nove traços é um problema extremamente complexo. Foi criado pelo eminente geógrafo chinês Bai Meichu, nacionalista ferrenho, em 1936, inicialmente como parte do “mapa da Humilhação Nacional Chinesa” traçado como uma linha em forma de “U”, englobando o Mar do Sul da China em todo o caminho até o Baixio James, que está 1500 km ao sul da China, mas apenas a 100 km de Bornéu.
Desde o início, a Linha dos Nove Traços foi promovida pelo governo chinês – lembrem-se, àquele tempo, ainda não comunista – como letra da Lei em termos de reclamações “históricas” da China sobre ilhas no Mar do Sulda China.
Um ano depois, o Japão invadiu a China. Ocupara Taiwan já em 1895. O Japão ocupou as Filipinas em 1942. Isso quer dizer que toda a linha costeira do Mar do Sul da China estava no controle de apenas um império pela primeira vez na história. O mar tornou-se um lago japonês.
Bem, isso durou apenas até 1945. Os japoneses ocuparam as Ilhas Woody nas Paracels e Itu Aba (atualmente Taiping) nas Spratlys. Depois do final da Segunda Guerra Mundial e com os Estados Unidos lançando bombas atômicas contra o Japão, as Filipinas tornaram-se independentes e as Spratlys foram imediatamente declaradas como território Filipino.
Em 1947, todas as ilhas receberam nomes chineses e em dezembro de 1947 todas as ilhas foram colocadas sob controle de Hainan (também uma ilha no Sul da China). Novos mapas foram desenvolvidos a seguir, porém agora com nomes chineses para as ilhas (ou recifes, ou baixios). Só que havia um grande problema: ninguém explicou o significado daqueles traços (que originalmente eram onze).
Em junho de 1947 a República da China reclamou para si tudo dentro daquelas linhas – afirmando estar, ao mesmo tempo, aberta a negociações para definir fronteiras marítimas com outras nações a posteriori. Mas momentaneamente não havia fronteiras.
Todo o acima preparou o cenário para uma “ambiguidade estratégica” do Mar do Sul da China que continua até hoje – e permite ao Departamento de Estado acusar Pequim de “táticas de gangsters”. O clímax de uma transição milenar da “rede marítima” de povos seminômades para o sistema Westfaliano só rendeu problemas.
Chega o COC
E quanto as noções (norte)americanas de “liberdade de navegação”?
Em termos imperiais “liberdade de navegação” das costas ocidentais dos Estados Unidos para a Ásia – através do Pacífico, Mar do Sul da China, Estreito de Malaca e Oceano Índico – é questão restrita à estratégia militar.
Ocorre que a Marinha dos EUA simplesmente não pode conceber ter que lidar com zonas de exclusão no mar ou ter que obter uma “autorização” a cada vez que tiver que cruzá-las. Se assim fosse, o Império de Bases perderia o acesso a estas.
Isso combina com a marca registrada da paranoia do Pentágono, lidar com uma situação onde um “poder hostil” – nomeadamente a China – decide bloquear o comércio global. Em si mesma, a premissa é ridícula, porque o Mar do Sul da China é a principal, a artéria marítima vital para a economia globalizada chinesa.
Daí que não há justificativa racional para algo como o programa Liberdade de Navegação (LdN). Para todos os efeitos práticos, esses porta aviões como o Ronald Reagan e o Nimitz se exibindo para lá e para cá equivalem a uma espécie de “diplomacia dos canhões” do século 21. Pequim não parece impressionada.
Até onde tem a ver com os 10 membros da Associação das Nações do Sudeste Asiático (ASEAN na sigla em inglês – NT), o que importa neste momento é construir um Código de Conduta (CdC) para resolver os conflitos entre Filipinas, Vietnã, Malásia, Brunei e China.
Ano que vem ASEAN e China celebrarão 30 anos de relações bilaterais robustas. Há boa possibilidade de que fortalecerão o status para “parceria estratégica ampla”.
A COVID-19 fez todos os atores adiarem negociações para a leitura do segundo projeto único do CdC. Pequim gostaria que fossem feitos face a face – porque o documento é muito sensível e, até o momento, secreto. Porém acabaram por concordar em negociações online – através de textos detalhados.
Será trabalho duro, porque como a ASEAN tornou claro em encontro virtual no final de junho, tudo haverá de ser em acordo com as Leis Internacionais, entre elas a Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar (UNCLOS, na sigla em inglês – NT)
Se eles conseguirem concordar em um Código de Conduta até o final de 2020, um acordo final pode ser aprovado pela ASEAN em meados de 2021. A palavra “Histórico” é fraca até para começar a descrever isso – porque esta negociação está em andamento por não menos que duas décadas. Não se deixe de mencionar que um Código de Conduta invalida quaisquer pretensões dos Estados Um idos em assegurar “Liberdade de Navegação” em área onde a navegação já seria livre.
É que “liberdade” jamais teve nada a ver. Na terminologia imperial, “liberdade” significa que a China deve obedecer e manter o Mar do Sul da China aberto para a Martinha dos Estados Unidos. Bem, isso é possível, desde que você se comporte. Chegará o dia em que o Mar do Sul da China será “negado” para a Marinha dos EUA. E você nem precisa ser um Mahan para saber que isso será o fim do domínio imperial sobre os sete mares.
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