NAS ENTRANHAS
Em São Paulo as pessoas já não moram somente embaixo, mas DENTRO de buracos de pontes e viadutos
DO TAB
Reinaldo Canato
Ricardo nunca teve casa, mas já morou em muitos lugares. Hoje, vive dentro de viaduto. Ele se aninha sobre sacos pretos de lixo amontoados que fazem as vezes de colchão. Dorme embaixo do asfalto, entre a parede e um monte de terra.
O lugar é escuro mesmo de dia. Demora até o olho distinguir as formas. Quando a visão funciona, identifica vestígios da presença de Ricardo. Uma lata amassada de Brahma jogada num canto. A garrafa de 2 litros de Coca-Cola com água ao alcance da mão. Um saco de pão de hambúrguer.
Diferentemente da visão, o olfato não precisa de adaptação. Fareja imediatamente cheiro de fumaça. O fogo que afasta ratos e baratas escureceu os tijolos do interior e a parte externa da entrada do buraco. A passagem tem forma triangular e cerca de 1,5 metro de largura por 70 centímetros de altura — espaço suficiente para Ricardo sair com desenvoltura.
Ele sempre sai com a perna direita à frente, aterrissando o pé nos restos de fogo e em pinos de cocaína. Ricardo nem liga. Caminha na direção da maloca erguida 30 metros adiante, uma biqueira (ponto de venda de drogas) onde o chão é colorido por pinos.
Ricardo Estevão da Silva está na rua desde que se entende por gente. Abandonado ainda criança, passou a vida se drogando na zona leste de São Paulo. O buraco no viaduto do Tatuapé é mais um dos lugares de parada de sua vida.
OCUPAÇÃO VARIADA
É quase automático associar a população que habita buracos à droga. Como toda simplificação, é uma ideia errada. Luciano Damasceno de Oliveira, 42, lustra o sapato social antes de sair do buraco que chama de casa. Ele mora e trabalha nas imediações da avenida Paulista. Com sua caixa de engraxate, visita consultórios de doutores que atendem nos conceituados hospitais 9 de Julho e Sírio-Libanês.
Livre do serviço, Luciano conversa com porteiros e zeladores no final da tarde e com frequência é indicado para bicos de servente de pedreiro em prédios comerciais e residenciais. De volta para casa, varre o chão à frente do buraco onde mora. Só então faz um afago nos cachorros e entra para dar continuidade ao ritual noturno. Prepara o jantar, toma banho, escova os dentes e descansa até pegar no sono.
Luciano pode dobrar as costas para entrar no buraco, mas isso não o fez vergar a espinha. "Nunca fui do vício. Nunca quis má companhia." Na coletânea de histórias de vidas que não saíram como planejado, ele é mais uma prova de que o desespero transforma tudo em casa. Até buraco de viaduto.
PADECENDO NO CRACK
O histórico do buraco que Ricardo habita é sombrio. Magrão, o primeiro morador, visitou uma favela próxima, arranjou confusão e foi assassinado. Alexandre veio em seguida, tomou posse e foi ficando, até que, numa negociação porca, vendeu um produto e entregou uma versão de qualidade inferior. Sabendo que estava a perigo, fugiu. Quando os cobradores/matadores chegaram com pedaços de pau, encontraram o buraco vazio. Agora, o buraco é de Ricardo.
"Aqui é lugar de gente que não tem medo de nada quando vale uma pedra", declara um homem na biqueira.
Ricardo está ciente dos riscos. Prefere falar em outro lugar e vai à frente, indicando o caminho. Veste só calça jeans, o que expõe as costas magras e manchadas pela fuligem das paredes do buraco. Seu aspecto faz os motoristas reduzirem a velocidade. Ele se aproveita e avança, causando uma sucessão de freadas, o que apressa sua chegada ao outro lado da avenida.
Ele é bom toureando os carros e péssimo falando de si. A escassez de convívio social praticamente extinguiu a capacidade de se expressar. A agressividade transborda, consequência da prontidão permanente para brigar. Ricardo conta que há duas coisas que nunca conheceu: o teto de uma casa e o pai. Ele não sabe o dia do próprio aniversário e acha que tem uns 36 anos.
TOCAS E DECADÊNCIA
Todo o submundo sabe que, nos buracos dos viadutos do Parque Dom Pedro 2º, no centro de São Paulo, tem gente entocada para fumar. O lugar foi planejado para ser espaço nobre, mas vive a decadência do crack. Douglas está deitado na calçada perto de um buraco e aceita falar.
Não vou manguear (pedir esmola), anuncia logo no começo. Ele conta que vai para dentro do buraco em duas ocasiões: quando chove, algo que não acontece todo dia. E quando quer fumar, algo que acontece todo dia.
Reclama dos ratos e ressalta que é proibido levar crianças. "Se pegarem, é treta feia." Douglas está eufórico com a atenção recebida. Quer tirar foto, aparecer em vídeo e gravar depoimento com "o testemunho da verdade absoluta das ruas".
Um chamado para cuidar de carros interrompe o devaneio. Ele se despede explicando que quem está no crack aprende a se aproveitar dos mais fracos, não baixar a cabeça para os iguais e obedecer aos mais fortes.
LEI DO SILÊNCIO
Uma mulher aproveita para reclamar que o filho foi preso injustamente. A conversa toma o rumo sobre quem frequenta os buracos e ela atalha. "Deste pessoal eu não falo. Não sei nada deles e nem quero saber."
Falar de quem mora embaixo dos viadutos destrava sua língua. Vizinha dos buracos, ela vive do outro lado da rua, num conjunto de malocas limitadas por uma cerca que lembra as usadas em galinheiro. A mulher quer mudar. Nem precisa ser para uma casa. Ela se contentaria com um barraco com água.
"Aqui a gente faz as necessidades em sacolas e tem que sair da favelinha para jogar fora na mesma hora. É proibido acumular, por causa do fedor e porque chama ratos e baratas."
Ela não deixa ver a situação de perto; só ultrapassa a cerca de galinheiro quem é autorizado. Nessa hora, a mulher sussurra: "Vocês sabem que estão sendo observados, né?" O pescoço se move, fazendo o nariz apontar na direção de uma Ford Edge.
No banco do motorista da SUV, que mesmo usada custa fácil mais de R$ 100 mil, um homem não disfarça que acompanha a conversa. A mulher passa o número do WhatsApp e diz que "pedirá permissão" para mostrar onde vive.
No dia seguinte, a ligação dura até o repórter se identificar. A mão do medo cala a mulher, que desliga em segundos. Retorna o telefonema pouco depois para fazer uma concessão e um pedido. "Pode publicar as coisas que falei, mas pelo amor de Deus, não coloca meu nome."
Partiu dessa SUV a ordem para Douglas cuidar de carros. Safo, ele entendeu que era para passar a semana dando perdido na reportagem.
INVISÍVEIS SEM ESFORÇO
A avenida dos Bandeirantes também tem morador de buraco em viaduto, mas os usuários de crack enxotam qualquer estranho. Querem privacidade, algo que não carece de esforço. A magreza e os farrapos afugentam um bocado de gente; o vício os torna insignificantes para outros tantos.
Esse arranjo também se aplica ao viaduto do Tatuapé e permite que Ricardo relaxe sossegado às 15h de um sábado. O buraco onde ele descansa fica entre o muro do trilho do trem e o viaduto. No miolo existe uma ciclovia, separada da calçada para caminhadas e corridas por um canteiro em que a grama não pegou direito.
As pessoas que passam em roupas fitness não importunam Ricardo. O incômodo vem do transporte público. Ônibus fazem barulho a todo instante. Trens fazem estrondo a cada cinco minutos.
O buraco não é o pior lugar onde Ricardo já dormiu. As entranhas do viaduto têm a vantagem de serem secas. Elas também não são seu endereço definitivo. O homem de idade incerta nunca sabe onde passará a próxima noite.
VIZINHOS DO RIO
Maiara da Silva e Rogério de Santana dos Santos vivem nas sombras. Eles se arranjaram no vão de uma ponte que sustenta o asfalto da marginal Tietê, acima de um córrego. Igual a tudo que possuem, a cama veio do lixo. Rogério arrastou um estrado de metal e um colchão puído para dentro do vão que dividem. Paletes e uma corda mantêm considerável distância do chão — medida providencial, porque quando chove entra água que escorre da marginal. A gambiarra só não serve contra os ratos.
Rogério depositou o almoço na cama para um gole de cachaça. Excitado com o banquete, um rato entrou correndo na quentinha, que deslizou para o chão. Ele ficou puto, mas não tentou matar o animal. "Também é filho de Deus."
A chegada de Maiara acalma Rogério. Ela conta que estava com amigos fumando um baseado. A rodinha foi formada numa ruela entre um córrego e o centro de treinamento do São Paulo. Trata-se de uma espécie de trilha com 600 metros de extensão que liga a avenida Marquês de São Vicente à Marginal Tietê. Um desvio antes de chegar à calçada da marginal leva para baixo da ponte. Rogério e Maiara fazem o caminho da sarjeta várias vezes por dia.
Chegar ali revela um córrego estreito de água suja. Os longos blocos de concreto da estrutura da ponte se apoiam nas margens. Acima, os blocos ficam cada vez mais estreitos, formando um desenho que lembra arquibancada de estádio. No ponto em que a estrutura faz contato com o asfalto da marginal existem buracos. Rogério e Maiara tomaram posse de um deles, e têm vizinhos. Outros dois buracos estão ocupados. Um casal e um homem que não querem conversa.
As pessoas usam panos velhos para fechar os vãos. Maiara achou um cobertor da Hello Kitty no lixo e deu um toque feminino ao lugar onde mora. Ali dentro, uma pessoa consegue ficar de pé com a cabeça a meio metro do asfalto. Como mantém o colchão alto, o casal dorme quase grudado ao chão onde passam os carros. O asfalto da ponte e da marginal são desnivelados e o contato do pneu com o degrau produz um barulho ininterrupto, seco e cadenciado: tum tum; tum tum; tum tum... Maiara reclama, Rogério diz que é assim mesmo quando se mora no "esgoto de São Paulo".
PEDRA COMO CUPIDO
Maiara e Rogério se conheceram numa ocupação e são casados desde 2009. Tinham uma vida normal. Ela trabalhava com limpeza e teve carteira assinada quatro vezes. Ele nunca assinou carteira e se virava com reciclagem. O que mais catou na vida foram latinhas.
O filho deles nasceu meses depois do casamento. Rogério mal conheceu o bebê. Perdeu-se no crack no ano seguinte e abandonou a mulher e o menino.
Maiara nasceu em Salvador e sua família mudou para São Paulo quando tinha 12 anos, na expectativa de que a garota tivesse um futuro melhor. Depois que o marido foi embora, criou o filho com a ajuda da mãe, no Butantã, e sua vida seguiu no rumo até 2019. "Vim buscar Rogério e fiquei. Já tinha usado baseado e farinha [cocaína], e por algum motivo quis experimentar [crack]. Foi o erro da minha vida." Os parentes tentaram intervir. "Minha família pede para eu voltar para casa, mas tô doente. Não imaginava chegar a uma situação dessas."
Rogério veio à cidade por livre e espontânea vontade. Nascido em Propriá (SE), tinha 9 anos quando resolveu fugir de casa para procurar o pai, que morava em São Paulo. Várias caronas depois, chegou à cidade e viu o quanto ela é grande. Sem encontrá-lo, rapidamente se perdeu. "Comecei a pedir e, não vou mentir, chegou um momento em que fui roubar. Depois, vi que não era assim. Parei."
Como o marido saiu de casa, eles ficaram anos separados. Reataram tendo o crack como cupido. Maiara tem 28 anos e a impressão de que caiu num caminho sem volta. Rogério está com 33, usa drogas desde menino e tem a sensação de que o tempo limpo foi uma breve exceção.
Ele carrega no corpo a decadência do vício. Tem só metade dos dentes superiores, as unhas dos pés estão podres e a pele está marcada por feridas e cicatrizes. Pior é a consciência, que não liga para mais nada. Rogério não acredita que está perdendo algo por causa do crack.
Maiara ainda faz questão de tomar banho todos os dias. Mesmo depois de dois anos de dependência, sua pele tem uma lisura e brilho que transborda vigor. Ela consegue sustentar uma conversa e demonstra arrependimento. Gostaria de conseguir uma vaga de internação numa clínica. Limpa, poderia voltar a estar com o filho e o restante da família.
DIGNIDADE PRESERVADA
Luciano fricciona com firmeza a água na cara amassada para espantar o sono. Seca o rosto, levanta a bombona de 20 litros e assiste a água deslizar para a chaleira. Terminado o café da manhã, lava a louça, escova os dentes, lustra o sapato e sai apressado trabalhar.
Deixa seus dois cachorros vigiando o buraco na passarela para pedestres em que mora, na avenida 9 de Julho. Luciano é dono de um macho brincalhão e uma fêmea feroz e arisca, dupla capaz de latidos escandalosos quando alguém se aproxima. O atributo é providencial porque alerta os funcionários do hospital que fica perto do buraco. Os seguranças vigiam o estabelecimento e a casa de Luciano.
Baiano de 42 anos nascido em Euclides da Cunha, cidade onde se desenrolou a Guerra de Canudos, ele conseguiu se adaptar a morar no buraco de uma passarela sem perder a integridade. O álcool e as drogas são um marcador forte, talvez o principal, da população em situação de rua. Quanto mais próximo a eles, menor a dignidade. Luciano fala com orgulho que sempre esteve limpo.
COLEÇÃO DE AMIGOS
O que afetou o cotidiano de Luciano foi a pandemia. As obras minguaram e os bicos de servente de pedreiro também. O serviço de engraxate tinha médicos como principais clientes, mas o povo do jaleco branco evitava contato, por medo de passar covid-19.
Luciano diz que não ficou na mão. Um cliente que ele define como "um médico muito sério" baixou o aplicativo da Caixa no próprio celular e pediu o auxílio emergencial para ele. A boa reputação ainda garantiu mesa farta no Natal e Ano-Novo. As doações chegaram de todos os lados.
Luciano também é conhecido dos garis do turno da noite, que o observam trazendo as bombonas de água enchidas num posto de combustível próximo. Enquanto varrem o chão, os funcionários da prefeitura acompanham o morador do buraco lavando roupa e preparando o jantar.
Dentro do cubículo, Luciano tem uma cama de solteiro e potes em que guarda arroz, sal e café. Sem geladeira, a carne é comprada a cada refeição. "O mais comum é fazer arroz acompanhado de peito, asa de frango ou um bifinho. Aprendi a me virar e fica bom."
Quando sente falta das comidas da terra, vai a um restaurante de comidas nordestinas e pede sarapatel. Aos domingos, abastece de créditos o celular de algum porteiro amigo e liga para os pais. Conversam até o último real. "Falamos uns 40 minutos, é bastante tempo. Conto muitas coisas, só não falo das condições em que moro. Meu 'véio' [Raimundo] tá com 92 anos e minha 'veia' [Julita], com 87. Por que falaria?"
FALTA DE SORTE
Os pais ensinaram Luciano a trabalhar desde cedo. "Na Bahia, com 8 anos eu tava na enxada. Hoje em dia mudou muito, mas naquela época [década de 1980] era mais na roça que na escola, não dava para aprender. Não sei ler nem escrever. Meu pai dizia que se eu estudasse, os moleques novos não comiam. Não aprendi nem o alfabeto inteiro."
Ele já era adulto quando foi tentar a vida em Aracaju. Em 2002, aproveitou que a avó morava em São Paulo e acompanhou um colega que estava de mudança para a cidade. Viveram juntos até 2007, quando ela morreu. Manter a casa ficou pesado. Luciano alugou um quartinho numa pensão, mas um crime atrapalhou sua história. O filho do dono da padaria em que trabalhava foi assassinado. O dono desgostou do Brasil e foi embora para Portugal.
Sem emprego, Luciano estava em vias de ser despejado quando arranjou emprego numa garagem de ônibus como lavador. Serviço pesado. Em 2011, as costas arrearam. Internado para operar duas hérnias, saiu do hospital com uma cicatriz e sem nenhum dinheiro.
"Tentei ir para albergue, mas era muito maloqueiro. Tinha briga feia. Não dava, não. Você trabalha o dia inteiro e não pode descansar. A rua foi uma precisão."
A primeira noite foi traumática. Luciano conta que estava amuado quando deitou na calçada da rua Carlos Sampaio, uma travessa da avenida Paulista. Tinha medo de aparecer algum drogado com uma faca ou pedaço de pau. Mas a situação durou pouco. "Um conhecido ia voltar para o estado dele [Paraná] e ofereceu a casa em que morava. Ele falou: 'Fica com meu quartinho. Você é gente que prefere um lugar sossegado.' Era o que tinha para mim."
A Guarda Civil Metropolitana apareceu logo nas primeiras noites, cheia de perguntas. Ele acredita que os homens perceberam que não se tratava de um drogado. Luciano nunca mais foi visitado.
Em 2021 serão 10 anos vivendo no buraco da passarela. Luciano avalia que é tempo demais e pondera se não é hora de voltar para Euclides da Cunha. Não vai faltar ajuda. Já tem médico dizendo que banca a passagem se essa for a decisão.
CONTROLE DE FLUXO
O viaduto Rudge tem moradias improvisadas nas duas extremidades, conseguindo ser destaque negativo numa cidade com gente morando em buraco de viaduto e em vão de ponte. Sua face mais conhecida é a favela do Moinho, um pedaço do centro de São Paulo onde a gambiarra habitacional se normalizou. O pilar do viaduto virou a parede de uma casa. Casebres se multiplicaram correndo por 400 metros do muro do trilho do trem.
Com milhares de pessoas próximas à linha férrea, o poder público resolveu agir — o que não significa remover os moradores para um lugar seguro. A providência foi instalar uma cancela e um semáforo embaixo do viaduto, no ponto onde fica a passagem das pessoas. Cada vez que o sinal apita, um funcionário salta da guarita para confirmar que ninguém será atropelado.
Manoel Messias dos Santos, 44, mora na casa ao lado da cancela. Carrega reciclável do nascer ao pôr do sol para levantar os R$ 600 do aluguel. Ele considera o valor alto, mas é o preço a pagar para realizar o sonho de ter energia elétrica e água. A única preocupação pendente em relação à moradia não está ao alcance de seus esforços, o medo de bala perdida.
Sem poder resolver esse problema, o carreteiro concentra energia no desempenho escolar de Igor, o filho de 8 anos. Não quer que o menino cresça como ele, analfabeto. Deseja o mesmo para Eduardo, o bebê de um ano e oito meses que se agita ao ouvir o trem passar rente à janela.
VIADUTO E LOTEAMENTO
Na outra extremidade do viaduto Rudge também há muita gente morando. Kelly Christhyne de Paula, 24, já se acostumou à cara de espanto do motorista do Uber quando ela diz "é aqui mesmo" e aponta uma porta que dá acesso ao interior do viaduto. O lado de dentro é ainda mais surpreendente. São 70 famílias morando em casebres dentro do asfalto.
Os imóveis dispõem de água encanada e energia elétrica — item providencial, porque sem ventilador o calor empapa a roupa de suor. Tantas famílias morando no mesmo espaço exige serviços. O loteamento dentro do Rudge tem mercearia, bar, lanchonete e manicure.
Os estabelecimentos funcionam dentro das casas que formam corredores internos repletos de roupas estendidas para secar. Os imóveis contam com ao menos a mobília básica: fogão, geladeira, cama e armários. Considerável parte deles tem chuveiro próprio, mas existe um banheiro coletivo e máquinas de lavar de uso comum.
Os moradores trabalham em empregos e subempregos no centro: cozinheiros, garçons, faxineiros, serventes de pedreiro, catadores de reciclável e guardadores de carro. Eles têm duas coisas em comum: agradecem por terem um teto, mesmo que seja o asfalto de um viaduto; e fazem fila na lista por uma moradia popular.
A Secretaria Municipal de Habitação de São Paulo admite que a cidade tem déficit de 369 mil imóveis. A Prefeitura informou que nos últimos quatro anos foram entregues 29,4 mil unidades habitacionais.
Em nota, o município acrescentou que sua "política habitacional é composta por diferentes programas que articulam modalidades de atendimento provisório e definitivo". Palavras bonitas, mas o resultado prático é que, mantida esta velocidade, levará 50 anos para o problema ser resolvido.
As pessoas pedem menos discurso e mais ação. Seja por causa de droga, falta de instrução ou falta de sorte, viver dentro de um viaduto, ponte ou passarela é uma violência. Refeições são interrompidas porque uma barata cai no prato. Pessoas acordam num sobressalto ao sentir um rato correr sobre o corpo.
O precipício do submundo está ao lado de quem mora dentro de um buraco. Só com muita fibra para manter a sanidade.
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