MANLIO DINUCCI
GUERRA NUCLEAR
O PRIMEIRO DIA
De Hiroshima até hoje:
Quem e como nos conduzem à catástrofe
3.5 O inquinamento radioactivo dos testes e das
instalações nucleares
Parte 1
Outra herança mortal que é deixada às gerações futuras é a
radioactividade produzida pelos testes nucleares. Ente 1945 e 1991, foram efectuados, oficialmente, 2.024 explosões
experimentais, das quais 528 na atmosfera e 1.496 subterrâneas: os EUA efectuaram 1.030 (215 na atmosfera e 807 subterrâneas; a URSS, 715 (219 na
atmosfera e 496 subterrâneas); a França 204 (50 na atmosfera e 154
subterrâneas); a Grã-Bretanha 45 (21 na atmosfera e 24 subterrâneas); a China
38 (23 na atmosfera e 15 subterrâneas). Juntam-se a estas, os dois «testes» na atmosfera, efectuados pelos EUA sobre Hiroshima e Nagasaki, em 1945.
Os primeiros a ser expostos às radiações são os militares que participam
nos testes. Nos Estados Unidos, são enviados mais 200.000 nos polígonos onde se
efectuam, entre 1945 e 1962, as explosões nucleares atmosféricas. Nesse momento
quase ninguém dá conta do período em que é exposto e, também, porque os
comandos garantem que, com as indumentárias de protecção de que dispõem, não
correm nenhum risco. Só anos depois, ao ficarem doentes e, muitos, morrendo de
cancro por causa das radiações absorvidas, é que se dão conta de terem sido
usados como cobaias humanas, nos exercícios de guerra nuclear.
«Tinham nos dito que estávamos a 3.750 jardas (3.429 metros) do ground
zero, conta um dos soldados que, em Junho de 1957, participou no teste nuclear
Priscilla, em Camp Desert Rock, no Nevada. «No clarão da alvorada podíamos ver
distintamente, preso a uma grande bola travada, um pequeno objecto a cerca de
700 pés (cerca de 200 metros) do solo. Quando é iniciada a contagem
decrescente, disseram-nos para nos ajoelharmos na trincheira, com as costas
voltadas para o ponto da explosão, tendo os olhos bem fechados e premindo o
antebraço sobre os óculos de protecção. No momento da detonação, cerca das seis
da manhã, apesar de termos os olhos fechados e os óculos seguros, vi por uns
instantes os ossos do antebraço que tinha premido contra os óculos. Depois de um
ou dois segundos, a terra tremeu. Mas ainda estava tudo em silêncio. Depois, um
rugido indescritível. Detritos de todos os géneros, arremessados pela explosão,
voavam sobre a trincheira que, em parte, se tinha desfeito, enterrando alguns
de nós. Depois de 20 ou 30 segundos, disseram para nos levantarmos e olharmos
para a bola de fogo. Parecia em cima das nossas cabeças e ainda ardia. Depois
fizeram-nos sair das trincheiras e avançar para o ground zero. Naquela época,
pensavam que era possível combater uma guerra com tais armas. Só depois de
alguns anos é que me dei conta que era uma loucura oficial, conduzir estes
testes e doutrinar as tropas que participavam neles, para dizerem que tinha sido
útil e também possível combater e vencer uma guerra nuclear».
Outro soldado que participou, em Julho de 1957, no mesmo polígono, no
teste Shot Hood, com um engenho muito mais potente (80 kiloton), conta o que
aconteceu quando, depois da deslumbrante explosão, lhe foi dito para se
levantar: «Os meus olhos começaram a olhar para cima, sempre mais para cima,
seguindo o espesso tronco de fumo e fogo ardente, na parte superior do
grande cogumelo. Não consigo mover-me, se bem que tenha sido dada essa ordem. Então
um sargento deu-me um pontapé no traseiro, gritando-me para eu andar. Tínhamos começado
a caminhar em fila indiana em direcção ao ground zero, sempre com o olhar fixo,
como hipnotizados, para aquela coluna de fumo e chamas que continuava a
fervilhar sobre nós». O mesmo soldado, ao pensar naquele momento, escreve:«
Então, eu tinha uma fé completa nas autoridades e jamais teria imaginado que me
teriam metido em perigo numa situação de não combate. Claro que me enganava. O
governo era descuidado com todos nós. A nossa verdadeira função, ali, era de
fazer de manequins nas trincheiras. Mas para que diabo, devíamos tomar de
assalto o ground zero, poucos minutos depois da explosão? O que é que restava
lá para assaltar?»
Um marinheiro, que em Março de 1954 se encontra a bordo do
contratorpedeiro Philip, a cerca de
de 30 milhas (mais de 55 km) do atol de Bikini, também recorda a explosão de uma
bomba de hidrogénio de 15 megaton:« Tinham-nos dito para não olharmos para a
esfera de fogo porque, também àquela distância, poderíamos ficar com danos
permanentes nos olhos. Quando é iniciada a contagem decrescente, nós, no
convés, agachámos-nos sobre o lado direito, com a cabeça entre os braços e os
olhos fechados. No momento da explosão, a luz da alvorada transformou-se numa
luz deslumbrante, como um sol do pino do verão. A seguir, depois de alguns
minutos, Podemos ver o que o homem tinha feito. A bomba de hidrogénio tinha
criado o espectáculo mais aterrorizador que os olhos humanos jamais tinham visto.
Tínhamos a visão do Apócalipse. Pudemos ver a onda de choque que se aproximava,
movendo-se através da água, varrendo em direcção às nuvens, vaporizando-as.
Ninguém da equipagem falava, estava um silêncio religioso, enquanto víamos a
nuvem atómica em ebulição que ascendia ao céu. Recordo de ter-me dirigido ao
meu superior, perguntando-lhe como alguém poderia pensar em iniciar outra
guerra. Não me respondeu, apenas abanou a cabeça lentamente.»
Nos anos seguintes aos testes nucleares, o governo quase nunca reconhece
que os tumores contraídos pelos soldados são devidos às radiações absorvidas. Um
dos «veteranos atómicos» escreve: «Ao longo dos anos, tive de passar por
várias intervenções cirúrgicas para remover as células cancerosas do rosto, do peito e dos
braços.Tentei obter uma compensação, mas foi-me sempre negada». Outro escreve:
«Em minha opinião, foi gasto um montão de dólares, retirados dos impostos, para
redigir estudos enganosos e convencer que os testes não eram perigosos para a
nossa vida e, para o que é mais importante,
para a nossa saúde.»
Os testes do Nevada, também, semearam a morte entre os civis. As nuvens
radioactivas das explosões espalharam-se numa vasta área elíptica, abrangendo o
Utah, o Idaho, Montana e zonas ainda mais longínquas, provocando no decurso dos anos, pelo menos, 15.000 casos mortais de cancro e 20.000 não mortais.
Parte 2
A morrer devido aos testes nucleares também estão as divas de Hollywood.
Em 1954, a firma cinematográfica, RKO decide realizar um filme sobre Gengis
Khan, The Conqueror, dirigido por
Dick Powell e interpretado por John Wayne e Susan Hayward. Na impossibilidade
de filmá-lo na Mongólia, sendo o período da guerra fria, o grupo de artistas
vai para o deserto do Utah, a pouco mais de 150 km do polígono do Nevada onde
ocorrem testes nucleares. Permanecem aí durante três meses e, regressando a
Hollywood, levam do Utah, 60 toneladas de areia do deserto para tornar mais
realísticas, as cenas a filmadas nos estúdios. Nos anos seguintes, 91 dos 220
membros da troupe são atingidos por vários carcinomas. Mesmo que a causa não
seja oficialmente reconhecida, o Departamento de Biologia da Universidade de Utah
conclui, depois de ter estudado o caso, que a causa a provocar na troupe uma
tão alta incidência de mortes pelo cancro não podia ser outra senão o fallout
dos testes nucleares do Nevada.
Só em 5 de Agosto de 1963, pois que desde 1945 são efectuadas, na totalidade, 528 explosões nucleares na atmosfera, os EUA, a União Soviética e a
Grã-Bretanha assinam o Tratado de Interdição Parcial de Ensaios Nucleares (Partial Test Ban Treaty) que proíbe
as explosões nucleares na atmosfera, no Espaço Exterior e nas profundezas
marítimas. Mas, a radioactividade tinha-se espalhado na atmosfera
terrestre: só os testes realizados no polígono do Nevada, entre 1951 e 1963, lançam 12 biliões de curie, uma radioactividade equivalente a cerca de 150 vezes à que foi provocada pela
catástrofe nuclear de Chernobyl, em 1986.
Em cerca de metade dos testes subterrâneos, verificam-se emissões de radioactividade,
mas numa medida muito menor, se comparadas às das explosões na atmosfera. Segundo
um estudo efectuado pelo US Congressional Office of Technological Assessment,
em 1989, 126 explosões nucleares subterrâneas, efectuadas no polígono do
Nevada, entre 1970 e 1988, provocam um lançamento de radioactividade na
atmosfera, quer imediatamente, quer nas semanas seguintes, devido ao gás que, ao
espalhar-se, atravessa as rochas porosas e as cavidades subterrâneas,
atingindo a superfície mesmo em zonas distantes.
Juntam-se a estas, as emissões radioactivas ds instalações nucleares
militares: nas americanas, segundo o mesmo Departamento de Energia,
verificam-se cerca de 10.000 casos de contaminação activa do solo, das faldas
aquíferas e dos edifícios. Nas instalações de tratamento de Savannah River,
Hanford e Ineel, reservatórios contendo 300 milhões de litros de escórias
altamente radioactivas, filtram no solo cerca de 3,8 milhões.
Só na área onde está situado o maior complexo para o fabrico de armas
nucleares, a Hanford Nuclear Reservation, mais de 20.000 crianças estão
expostas ao iodo-131, um isótopo radioactivo que provoca o cancro da tiróide.
Dado que a radioactividade tem efeitos a longo prazo, prevê-se, a seguir aos
testes e às fugas radioactivas, pelo menos outros 120.000 casos de cancro de
tiróide, dos quais cerca de 6.000 mortais. É a Hiroshima dos Estados Unidos.
Ainda mais desastrosas são as consequências dos testes nucleares soviéticos.
Na região de Semipalatinsk, no Casaquistão, de 1949 a 1989 efectuam-se 459
explosões nucleares – das quais, 87 na atmosfera, 26 ao nível do solo, 346 subterrâneas – com uma potência total equivalente a 1.100 bombas de Hiroshima.
Os habitantes não são advertidos do perigo, nem protegidos com medidas
preventivas adequadas. Cerca de 1 milhão e meio de pessoas são atingidas pela queda
da radioactividade e dos gases radioactivos que se escapam durante os testes
subterrâneos. A mortalidade infantil é 10% superior à media nacional; a
incidência de doenças do sangue é de 30%; e casos de atraso mental, é 200%. A
incidência de casos de cancro, que em 1980 é de 158 para 100.000
habitantes, aumenta um terço em 10%. Entre 1980 e 1990, as mortes por cancro de
pulmão triplicam; as de cancro do intestino, aumentam oito vezes mais.
Nas instalações soviéticas, sobretudo nas «três cidades de plutónio»
(Cheyabinsk-65, Tomsk-7, Krasnoyarsk – 26), onde se produz a matéria prima para
as armas nucleares, verificam-se autênticos desastres. O mais grave teve lugar
em Chelyabinsk. De 1949 a 1956, as descargas radioactivas do complexo de Mayak
são lançadas no rio Techa, do qual se abastecem de água, 24 aldeias. Em 1957,
nas instalações de Kyshtym, explode um depósito de escórias altamente
radioactivas, contaminando um território habitado por 250.000 pessoas, do qual
é evacuado uma mínima parte. Dez anos depois, em 1967, quando a seca drena o
Lago Karachai, no qual o complexo de Mayak lança as descargas radioactivas de
1951, uma tempestade de vento espalha a poeira radioactiva sobre um território
habitado por meio milhão de pessoas.
Na região de Chelyabinsk, devido à radioactividade, 90 % das crianças
contrai doenças crónicas e a duração de vida é de 50 a 55 anos. É a Hiroshima
soviética, que faz mais vítimas do que as provocadas pelos bombardeamentos
nucleares das cidades japonesas.
A radioactividade produzida pelos testes nucleares (sobretudo
atmosféricos), dos acidentes em que estão envolvidas armas nucleares e as
emissões das instalações nucleares militares, compromete a saúde de milhões de
pessoas. Não se sabe com exactidão o número, pois o segredo militar reina
soberano. Segundo uma das estimativas, as pessoas atingidas pelos efeitos das
radiações serão 15 milhões e os mortos mais de meio milhão. No entanto,
sabe-se que os efeitos das radiações continuarão a transmitir-se, de geração em
geração, provocando outros milhões de mortos. Depois de Hiroshima e Nagasaki, a
Bomba continua a matar.
A seguir
3.6 A ligação entre o nuclear militar e civil
Tradutora: Maria Luísa de
Vasconcellos
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