Não vemos televisão. Nunca, ou quase nunca.
Aparecemos na televisão, isso sim; providenciamos histórias e imagens. Mas
nunca testemunhamos os resultados; que emoções o nosso trabalho, palavras e
imagens realmente evocam. Ou não evocarão sequer quaisquer emoções? Desabafa
Andre Vltchek, repórter de guerra e jornalista de investigação.
Depois de terminar o meu trabalho no Médio Oriente,
pelos menos por agora, estava à espera do meu voo para Santiago do Chile. Em
Paris. Podia contar com alguns dias “livres”, a processar o que ouvi e
testemunhei em Beirute. Dia após dia, durante longas horas, sentei-me num
lounge, a teclar e a teclar; a reflectir e a teclar.
Enquanto trabalhava, por cima de mim estava
sintonizado o canal noticioso France 24, a emitir de um ecrã plano.
As pessoas em meu redor iam e vinham: as elites da
África Ocidental nos seus frenéticos frenesins de compras, a berrar sem
qualquer cerimónia para os seus telemóveis. Coreanos e japoneses a visitar
Paris. Rudes alemães e norte-americanos do tipo encorpado, a discutir negócios,
a rir vulgarmente, a ignorar os “inferiores”, na realidade todos os que se
encontravam nas suas imediações.
Acontecesse o que acontecesse no meu hotel, a France
24 estava sempre, sempre e sempre ligada. Sim, precisamente; as 24 horas do
dia, reciclando durante dias e noites as mesmas histórias, de quando em vez
actualizando as notícias, com um ar de superioridade ligeiramente arrogante.
Aqui, a França julgava o mundo; ensinando a Ásia, o Médio Oriente, África e
América Latina sobre si mesmas.
Perante os meus olhos, acima de mim, naquele ecrã, o
mundo estava a mudar. Durante muitos meses cobri o pesadelo dos motins dos
traiçoeiros e violentos ninjas de Hong Kong. Estava a acontecer em todo o Médio
Oriente, principalmente no Líbano, e agora estava a caminho do meu segundo lar,
a América Latina, onde o socialismo continuava a ganhar eleições, mas estava a
ser agredido, mesmo aterrorizado, pelo corrupto e malicioso Império ocidental.
Tudo o que a France 24 estava a mostrar, testemunhei
regularmente com os meus próprios olhos. E mais, muito mais, de muitos ângulos
diferentes. Filmei-o, escrevi acerca disso, analisei-o.
Em muitos países, mundo fora, as pessoas tinham
partilhado as suas histórias comigo. Estive nas barricadas, fotografei e filmei
corpos feridos, bem como o tremendo entusiasmo e ânimo revolucionário. Também
testemunhei traições, deslealdades e cobardia.
Mas no lounge, à frente do aparelho de televisão,
tudo parecia bastante na moda, com muita classe, e reconfortante. O sangue
parecia uma paleta bem misturada, as barricadas um palco do musical mais
recente da Broadway.
As pessoas estavam a morrer de um modo sublime, os
seus gritos emudecidos, teatrais. A elegante apresentadora no seu vestido de
estilista surgia benevolente, sempre que as pessoas no ecrã se atreviam a
mostrar alguma emoção mais forte, ou torciam o rosto com dor. Era ela quem
mandava, e estava acima de tudo isto. Em Paris, Londres e Nova Iorque, as
emoções fortes, os compromissos políticos e os grandes gestos ideológicos
estavam fora de moda, há já muito tempo.
Durante os poucos dias que passei em Paris, mudaram
muitas coisas, em todos os continentes.
Os amotinados de Hong Kong estavam a evoluir; a
começar a incendiar os seus compatriotas só por se atreverem a manifestar a sua
fidelidade a Pequim. Mulheres eram agredidas sem cerimónia, com barras de
metal, até ficarem com os rostos cobertos de sangue. No Líbano, o enorme punho
cerrado do Otpor favorável a uma mudança de regime pró-ocidental estava
subitamente no seio das manifestações antigovernamentais. A economia do país
colapsava. Mas as “elites” libanesas estavam a torrar dinheiro, à minha volta,
à volta de Paris e à volta do mundo. Os pobres miseráveis libaneses, bem como a
classe média empobrecida, exigiam justiça social. Mas os ricos do Líbano gozavam
com eles, exibindo-se. Tinham tudo pensado: tinham roubado o seu próprio país,
depois abandonaram-no, e agora estavam a fazer um enorme baile aqui, na “cidade
das luzes”.
Mas criticá-los no Ocidente tem sido tabu; proibido. O politicamente
correcto, a todo-poderosa arma ocidental utilizada para manter o status quo,
tornou-os intocáveis. Pois são libaneses; do Médio Oriente. Um belo acordo,
certo? Roubam os seus conterrâneos médio-orientais, mas em Paris ou em Londres
é tabu expor a sua “cultura” do deboche.
No Iraque, os sentimentos anti-xiitas, e como tal
anti-iranianos, foram fortemente e claramente disseminados do estrangeiro. O
segundo grande episódio da dita Primavera Árabe.
Os chilenos têm estado a lutar e a morrer, a tentar
depor um sistema neoliberal, que lhes fora enfiado garganta abaixo desde 1973
pelos Chicago Boys.
O movimento socialista boliviano, bem-sucedido,
democrático e racialmente inclusivo, foi derrubado, por Washington e pelos
traiçoeiros quadros da elite boliviana. As pessoas também têm estado a morrer
aqui, nas ruas de El Alto, La Paz e Cochabamba.
E lá está Israel outra vez, em Gaza. Em plena força.
Damasco foi bombardeada.
Fui filmar os argelinos, os libaneses e os
bolivianos; pessoas que estavam a defender os seus programas na Place de la
République.
Antecipei os horrores que esperavam por mim,
brevemente; no Chile, na Bolívia e em Hong Kong.
Escrevia, febrilmente.
Enquanto murmurava o aparelho televisivo.
As pessoas entravam e saiam do lounge,
encontravam-se e separavam-se, a rir, a gritar, a chorar e a fazer as pazes.
Nada a ver com o mundo.
Os rasgos de gargalhadas indecentes irrompiam
periodicamente, mesmo enquanto as bombas explodiam no ecrã, mesmo enquanto as
pessoas carregavam contra a polícia e os militares.
***
Então, um dia, percebi que toda a gente se estava
nas tintas. Assim; tão simples.
Testemunhamos o que acontece, em todo o mundo;
documentamo-lo. Arriscamos a nossa vida. Envolvemo-nos. Somos feridos. Por
vezes ficamos perto, extremamente perto, da morte.
Não vemos televisão. Nunca, ou quase nunca.
Aparecemos na televisão, isso sim; providenciamos histórias e imagens. Mas
nunca testemunhamos os resultados; que emoções o nosso trabalho, palavras e
imagens realmente evocam. Ou não evocarão sequer quaisquer emoções? Só
trabalhamos para os órgãos de comunicação social anti-imperialistas, nunca para
os da corrente dominante. Mas para quem quer que trabalhemos, nunca fazemos
ideia das expressões faciais que os nossos relatos das zonas de guerra
despertam. Ou as emoções que os relatos de qualquer zona de guerra agitam.
E depois, estamos em Paris, temos algum tempo para
observar os nossos leitores, e subitamente compreendemos.
Compreendemos: porque tão poucos escrevem, apoiam a
tua luta, ou se batem até pelos países que estão a ser destruídos, dizimados
pelo Império.
Quando olhamos em volta, a observar as pessoas que
estão sentadas no lounge de um hotel, percebemos claramente: não sentem nada.
Não querem ver nada. Não compreendem nada. A France 24 está ligada, mas não é
um canal de notícias como era suposto ser, há muitos anos. É entretenimento, o
qual é suposto produzir um sofisticado ruído de fundo. E faz. Precisamente
isso.
Tal como a BBC, a CNN, a Fox e o Deutsche Welle.
***
Enquanto o presidente legitimamente eleito da Bolívia
era forçado ao exílio, de lágrimas nos olhos, peguei no comando e mudei de
canal para um qualquer bizarro e primitivo canal de desenhos animados.
Nada mudou. As expressões nos rostos das cerca de
vinte pessoas em meu redor não sofreram qualquer alteração.
Se no ecrã tivesse explodido uma bomba nuclear,
algures no subcontinente, ninguém ia prestar qualquer atenção.
Algumas pessoas estavam a tirar selfies. Enquanto eu
descrevia o colapso da cultura ocidental no meu MacBook. Estávamos todos
ocupados, à nossa maneira.
Caxemira, Papua Ocidental, Iraque, Líbano, Hong
Kong, Palestina, Bolívia e Chile estão a arder.
E depois?
A dez metros de distância, um empresário americano
berrava ao telemóvel:
“Vão convidar-me a voltar a Paris em Dezembro? Sim?
Temos que tratar dos pormenores. Quanto é que vou receber por dia?”
Golpes, insurreições, motins, no mundo todo.
E aquele sorriso profissional, plástico, da senhora,
a apresentadora, no seu vestido retro azul e branco de estilista; tão
confiante, tão francesa, e tão infindavelmente falsa.
***
Ultimamente, não cesso de indagar se os habitantes
da Europa e da América do Norte terão algum direito moral a controlar o mundo.
A minha conclusão é: definitivamente não!
Eles não sabem, e não querem saber. Aqueles que
detêm o poder é que têm a obrigação de saber.
Em Paris, Berlim, Londres, Nova Iorque, os
indivíduos estão demasiado ocupados a admirarem-se, ou a “sofrer” com os seus
problemas pequenos e egoístas.
Estão demasiado ocupados a tirar selfies e com a sua
orientação sexual. E, claro está, com os seus “assuntos”.
É por isso que prefiro escrever para a comunicação
social russa e chinesa, para me dirigir a pessoas que estão assustadas tal como
eu, ansiosas quanto ao futuro do mundo.
Os editores desta revista, na distante Moscovo, na
mesma medida sentem ansiedade e dedicação. Sei que sentem. Eu, e os meus
relatos, para eles não somos mero “negócio”. As pessoas cujas cidades são
esmagadas, arruinadas, não constituem qualquer tipo de entretenimento na
redacção da NEO.
Em muitos países ocidentais, as pessoas perderam a
sua capacidade de sentir, de se envolver, e de se bater por um mundo melhor.
Devido a esta perca, deviam ser obrigadas a abdicar
do poder que possuem sobre o mundo.
O nosso mundo está estragado, cicatrizado, mas é
extremamente belo e precioso.
Trabalhar para que se aperfeiçoe e sobreviva não é
um negócio.
Só podemos confiar nos grandes sonhadores, poetas e
pensadores para que o defendam, o façam avançar.
Existem muitos poetas e sonhadores entre os meus
leitores? Ou assemelham-se, e comportam-se, como os hóspedes naquele lounge de
hotel em Paris, perante o ecrã que emitia a France 24?
—
Andre Vltchek é jornalista de investigação, filósofo,
romancista e cineasta. Já cobriu guerras e conflitos em dezenas de países. Em
língua portuguesa tem publicado o livro Por Lula: O Brasil de Bolsonaro
– O Novo Tubarão Num Mar Infestado de Tubarões, entre as restantes
obras encontramos estas: China and Ecological Civilization com John B.
Cobb, Jr., Revolutionary Optimism, Western Nihilism, o
romance revolucionário Aurora o e best seller de não ficção
política, Exposing Lies Of The Empire. Assista a Rwanda Gambit,
o seu documentário inovador sobre o Ruanda e a República Democrática do Congo e
o seu filme/diálogo com Noam Chomsky On Western Terrorism. Vltchek reside actualmente no
Oriente asiático e no Médio Oriente, continuando a trabalhar em todo o mundo.
Pode ser contactado através da sua página pessoal, do
seu Twitter e
do seu Patreon.
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